Até que ponto somos livres quando aceitamos ser observados o tempo todo?

O Círculo', com Tom Hanks e Emma Watson, é suspense sobre tempos hiperconectados

Há mais de um século, Franz Kafka imaginou um homem despertando após uma metamorfose impossível. Décadas depois, George Orwell imaginou um mundo cujo ar parecia atravessado pela vigilância absoluta. Mas agora, imagine acordar e perceber que tudo ao seu redor; cada gesto, cada palavra, cada silêncio, pode estar sendo observado. Não por uma figura ameaçadora nem por uma entidade onisciente, mas por milhares de olhares anônimos, atentos, conectados a você o tempo todo.

E imagine que, em vez de fugir desse olhar, você passa a desejá-lo. A acreditar que ser visto é ser valorizado, que a visibilidade é a forma mais eficaz de existir.

É justamente nesse terreno inquietante, onde tecnologia e desejo se entrelaçam, que O Círculo nos convida a entrar.  O filme funciona como um experimento social que revela como a promessa sedutora de transparência e conexão pode, pouco a pouco, se transformar em uma nova forma de controle: mais sofisticada, mais silenciosa e infinitamente mais eficaz.

O filme e suas bases

Lançado em 2017 e dirigido por James Ponsoldt, O Círculo apresenta uma crítica direta à lógica de hiperconexão contemporânea. O enredo gira em torno de uma empresa que promete integração total entre pessoas, experiências e dados, abrindo espaço para questões urgentes: vigilância, privacidade e controle social.

Para o professor de História da Escola Monteiro, Márcio Vaccari, esses são temas fundamentais para discutir com os alunos. Ele destaca duas dimensões centrais: (1) o uso responsável da tecnologia e (2) o modo como nossos comportamentos passam a ser monitorados e moldados por corporações.

Segundo ele, “os mecanismos tecnológicos têm criado sistemas de vigilância de conduta e postura moral, que analisam o que postamos, como nos colocamos e até nossas escolhas, muitas vezes influenciando decisões que deveriam nascer da experiência, não das determinações corporativas”.

A análise do filme dialoga diretamente com as reflexões foucaultianas sobre poder e panoptismo. A narrativa atualiza, em ritmo digital, um tipo de vigilância que não opera mais pela coerção, mas pela adesão voluntária.

Vaccari destaca que essa preocupação com vigilância e coleta de dados está longe de ser nova: “Desde os anos 1990, intelectuais alertavam que a nascente internet poderia se tornar um instrumento de monitoramento. Mesmo sem redes sociais, ela já traçava perfis dos indivíduos. O Círculo expõe justamente esse ponto: como dados podem ser utilizados para controlar escolhas, condutas e até fragilidades pessoais.”

Márcio Vaccari - Professor de Hitória no Ensino Médio da Monteiro

A herança distópica e o espelho contemporâneo

A discussão que O Círculo suscita ecoa obras clássicas como 1984 (Orwell), Admirável Mundo Novo (Huxley) e Nós (Zamiatin), que exploraram sociedades moldadas pela vigilância ou pela sedução. Na ficção mais recente, livros como Little Brother (Doctorow) e Feed (M.T. Anderson) trazem o controle para o terreno digital, ampliando o debate.

Ao relacionar essas obras ao cotidiano dos estudantes, Vaccari lembra que “os jovens já nascem inseridos nesse contexto, oferecendo voluntariamente seus dados e criando conteúdos que alimentam a rede. Muitos não percebem que essa ‘segunda existência virtual’ passa a determinar comportamentos, consumos e até percepções de si mesmos”.

Para ele, esse é um dos pontos mais produtivos para discutir em sala: como a vida digital, muitas vezes invisível para quem cresce dentro dela, vai moldando identidades, hábitos e horizontes de escolha.

Nós (Evgeni Zamiatin), Admirável Mundo Novo (Huxley) e Admirável Mundo Novo (Huxley)

A estética da vigilância

Em Vigiar e Punir, Michel Foucault descreve o panóptico como uma máquina de produzir sujeitos que se autocontrolam. Em O Círculo, esse mecanismo aparece transformado em tecnologia: o projeto SeeChange promete “transparência total”, convertendo a exposição voluntária em virtude, enquanto o olhar panóptico deixa de ser imposto e torna-se desejado.

Byung-Chul Han, na contemporaneidade, aprofunda essa discussão ao afirmar que vivemos numa “sociedade da transparência”, em que o oculto é visto com desconfiança e a exposição se torna imperativo moral. Assim, o que antes era disciplina agora é desempenho: mostramos porque queremos agradar, pertencer, existir.

Vaccari vê nesse ponto uma chave para o debate: o filme, segundo ele, usa uma narrativa simples e didática para mostrar como a sedução da tecnologia pode nos levar a perder vínculos e relações concretas, substituídas por interações mediadas. “Os jovens precisam refletir sobre como as relações físicas têm sido desconstruídas e substituídas por dinâmicas virtuais”, observa.

Quando questionado sobre cenas marcantes, ele destaca elementos do cotidiano da protagonista: o carro simples, as dificuldades financeiras da família, a relação ambivalente com a corporação, elementos que revelam como as big techs constroem uma sensação de bem-estar que mascara formas de dependência e controle. “As relações entre empregadores e empregados não são harmonizadas por ambientes coloridos ou supostos benefícios emocionais”, afirma. O filme revela esse conflito com clareza.

Cena do filme "O Círculo"

A questão central

Para Vaccari, o que deve guiar a discussão com os alunos não é condenar a tecnologia. “A tecnologia é boa”, afirma. “Não podemos voltar ao passado e culpá-la pelo uso que se faz dela. A questão não é buscar a felicidade na tecnologia, mas usar a tecnologia para alcançá-la de forma consciente.”

Sua expectativa é que o filme desperte nos alunos a capacidade de pensar criticamente sobre corporações, algoritmos e mecanismos de exposição contínua. Que eles questionem o que publicam, por que publicam e como suas ações alimentam sistemas que, muitas vezes, atuam sem transparência. 

Essa visão reforça a reflexão final do texto: O Círculo mostra que a vigilância contemporânea não se impõe; ela seduz. Ela promete pertencimento, acesso, fluidez e, justamente por isso, é fácil confundir exposição com liberdade. Talvez a pergunta que atravessa o filme: até que ponto somos livres quando aceitamos ser observados o tempo todo?, não encontre resposta simples. Mas talvez a questão mais urgente seja outra: por que sentimos tanta necessidade de sermos vistos?

Ao integrar a ficção com a análise filosófica e com as observações do professor Márcio Vaccari, percebemos que o filme é menos um alerta distópico e mais um espelho incômodo. Um convite a observarmos nossas próprias escolhas digitais, nossas entregas invisíveis, nossos desejos por visibilidade.

No fim, como lembra Vaccari, a tecnologia não é vilã. O perigo reside no uso concentrado dela para controlar comportamentos. A verdadeira liberdade talvez comece quando nos tornamos capazes de olhar para esses mecanismos, e para nós mesmos, com consciência crítica.

Texto: Deivid D´Paula