Imagem Divulgação

A história de Julius Robert Oppenheimer, o cientista americano reverenciado como o “pai da bomba atômica” devido ao seu papel fundamental no Projeto Manhattan, é amplamente reconhecida. Porém, as inquietações e dilemas que moldaram a pessoa por trás de suas realizações notáveis permaneceram obscurecidas por muito tempo, escondidas pelas controvérsias que envolveram seu nome.

Agora, é o filme “Oppenheimer” que assume a tarefa de explorar e desvelar a complexa trajetória desse cientista, cujas ações diretas desviaram o curso de uma guerra global e marcaram historicamente a humanidade. Além disso, o rastro deixado pelas ações de um único homem podem, ao mesmo tempo em que salvaram a humanidade, ter projetado no futuro do coletivo social o decreto do seu fim.

Kenneth Branagh, Rami Malek, Matt Damon, Emily Blunt, Florence Pugh, Cillian Murphy, Christopher Nolan, Robert Downey Jr. e Josh Hartnett

Oppenheimer é um filme histórico de drama dirigido por Christopher Nolan e baseado no livro biográfico vencedor do Prêmio Pulitzer, Prometeu Americano: O Triunfo e a Tragédia de J. Robert Oppenheimer, escrito por Kai Bird e Martin J. Sherwin. Ambientado na Segunda Guerra Mundial, o longa acompanha a vida de J. Robert Oppenheimer, interpretado por Cillian Murphy, físico teórico da Universidade da Califórnia e diretor do Laboratório de Los Alamos durante o Projeto Manhattan – que tinha a missão de projetar e construir as primeiras bombas atômicas.

A trama, dirigida por Nolan, acompanha o físico e um grupo formado por outros cientistas ao longo do processo de desenvolvimento da arma nuclear que foi responsável pelas tragédias nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em 1945. Além de Cillian, o elenco também traz nomes como Emily Blunt, Matt Damon, Robert Downey Jr., Florence Pugh, Gary Oldman, Jack Quaid, Gustaf Skarsgård, Rami Malek e Kenneth Branagh. Com um grandioso elenco, o longa-metragem disponibilizado em IMAX é um dos grandes filmes de 2023.

Entretanto, apesar da premissa inicial ser totalmente baseada num dos momentos mais marcantes da história da humanidade, a criação da bomba nuclear, as discussões e elementos propulsores do longa-metragem se ancoram em dilemas e perspectivas conflituosas, pessoais e coletivas, permitindo a reflexão de assuntos que podem passar despercebidos no filme. Sendo alguns deles, a complexa relação do poder, política e conhecimento, a reflexão acerca do papel da ciência na sociedade, as responsabilidades que vêm com as descobertas científicas e a politização do conhecimento.

Ator Tom Corti interpretando Albert Einstein

A ciência, o bem e o mal

Começando pelo fim, o que mais perturbou os espectadores foi a apoteótica cena final do filme Oppenheimer. Nela, o físico, após uma conversa com Albert Einstein, assegura que a bomba nuclear não desencadeará uma catástrofe global imediata, não destruindo a atmosfera. Entretanto, o que ele testemunha a seguir é a perturbadora visão de dezenas de mísseis e bombas sendo lançados através das nuvens. Essa cena encapsula o entendimento de Oppenheimer de que, embora a bomba não acabasse com o mundo no momento de seu lançamento, sua criação desencadearia a produção em massa de outras armas nucleares, que eventualmente poderiam levar à destruição da humanidade.

Isso ocorre porque, no decorrer dos séculos, a sociedade tem mantido uma concepção positivista da ciência, enxergando-a como uma fonte inquestionável de conhecimento. Curiosamente, apesar de sua presença dominante, a visão positivista é alvo de intensas críticas acadêmicas e essa contradição desafia a compreensão convencional da mesma.

O professor de Filosofia da Escola Monteiro, William Acosta, nos ajuda a entender essa dicotomia, partindo do ponto de vista de uma visão não positivista da ciência: “Desse modo, compreendo a ciência como um método de interpretação e modificação da realidade, partindo dessa visão a ciência tem o papel de nos ajudar a construir uma vida mais confortável, assim como as outras áreas do conhecimento, a grande questão está no tipo de sociedade em que a ciência se instaura”.

“A ciência não possui um ponto de vista moral, ela é utilizada a partir de pontos de vistas morais e por mais que ela nos proporcione inúmeras informações, a utilização dessas informações é feita por seres humanos e esses, por suas vez, possuem suas posições morais, não individuais, mas atravessadas pelas inúmeras instituições das quais fazem parte.” Explica, evidenciando que a maneira como o conhecimento será usado está ligado às ideias de quem o gerou ou de quem tem o poder de utilizá-lo. “Houveram momentos em que a ciência foi utilizada como forma de justificar racionalmente posturas que do ponto vista moral nos parecem abomináveis como, racismo e sexismo” exemplifica.

William Acosta

Com isso em mente, a ideia de que o conhecimento em si é inerentemente “bom” ou “mau” é um tanto equivocada. O que é mais apropriado talvez seja afirmar que o conhecimento é utilizado de forma “benéfica” ou “danosa” por aqueles que têm o poder de escolha. O potencial da ciência e suas tecnologias é vasto e, como tal, depende de como as pessoas aplicam esse conhecimento em suas ações e decisões. Portanto, o verdadeiro julgamento recai sobre como os indivíduos e a sociedade escolhem empregar e direcionar o saber científico, respeitando valores éticos e morais que promovam o bem comum.

A principal lição que podemos extrair, acredito, é compreender que a ciência é feita coletivamente por seres humanos e esses possuem interesses e dilemas com que precisam lidar, sendo assim, não há uma neutralidade no fazer científico”. Conclui, o professor, deixando o entendimento fundamental de que a ciência é uma empreitada humana, moldada por interesses, valores e dilemas individuais e coletivos. 

A busca pelo saber científico não ocorre em um vácuo de neutralidade, mas sim num contexto social, político e cultural. Dessa forma, é crucial reconhecer que a ciência é uma disciplina dinâmica, sujeita a influências e limitações humanas, e que a transparência, a reflexão crítica e a colaboração são fundamentais para garantir a integridade e a responsabilidade na prática científica.

O conhecimento através da história

A forma como a ciência interage com a sociedade tem evoluído ao longo da história, mas uma característica fundamental que perdurou foi o controle social por parte daqueles que detinham o conhecimento de fato, formando uma espécie de Infocracia, conceito criado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Esse aspecto é crucial para compreender a relação entre a sociedade e o conhecimento. Nesse sentido, o professor de História da Escola Monteiro, Márcio Vaccari, traça uma linha de acontecimentos para ilustrar como essa relação se deu historicamente.

Marcio Vaccari – Professor de História da Monteiro

Segundo Vaccari, ao longo da história, o controle do conhecimento e da ciência esteve, por um longo período, nas mãos de indivíduos ou entidades de autoridade que determinavam sua direção, influenciando assim o panorama sociopolítico: “Por exemplo, durante séculos, questões científicas, políticas e afins estavam sob o domínio de autoridades como reis e o clero. Contudo, ao longo dos últimos 200 anos, ocorreram transformações significativas que redefiniram o cenário do conhecimento” Explica.

Ainda de acordo com o professor, em momentos cruciais da história, o conhecimento deu voltas decisivas. Por milênios, o domínio da agricultura e a domesticação de plantas moldaram a civilização que conhecemos hoje. Em outro período marcante, aproximadamente no século V a.C., após o avanço da domesticação de plantas, ocorreu o fenômeno conhecido como “milagre grego”. Os gregos transcendem as narrativas mitológicas e introduzem o estudo sistemático dos fenômenos naturais por meio da filosofia.

“Por fim, durante o Renascimento, com a chegada da imprensa, a disseminação do conhecimento assumiu uma nova dimensão. A imprensa tornou-se uma ferramenta crucial na divulgação de teorias, na formação da opinião pública e na democratização do acesso ao conhecimento” Comenta, Vaccari, esclarecendo que essas reviravoltas históricas destacam a constante evolução da ciência e do conhecimento, bem como a importância de se manter uma visão crítica e aberta para garantir que o conhecimento continue a beneficiar a sociedade como um todo.

Oppenheimer e a responsabilidade do saber

A forma como o filme aborda o conflito entre ética e poder é notável, principalmente na construção da jornada moral do protagonista. Inicialmente, ele se vê confrontado por colegas do meio científico que lhe apresentam a preocupante perspectiva de que a culminação de séculos de conhecimento poderia resultar em uma terrível tragédia humanitária e quanto isso seria catastrófico. Eles argumentam que a criação da bomba nuclear pelo Projeto Manhattan, apesar de seus avanços tecnológicos, não deveria ser vista como um instrumento para trazer a paz, como inicialmente se acreditava. 

Cena da bomba atômica sendo gravada

Certamente, a criação da bomba nuclear é um exemplo de como a tecnologia, apesar de suas promessas de melhoria, pode também representar uma ameaça substancial. O avanço científico e tecnológico tem o potencial de nos aproximar da destruição, seja através da capacidade destrutiva da própria tecnologia ou dos impactos negativos que pode ter sobre o meio ambiente e as relações sociais.

Hoje, assim como aconteceu na década de 40, os avanços tecnológicos ocorreram como uma disputa de corrida de cavalos. E uma vasta variedade de ferramentas, tecnologias e saberes são produzidos de forma instantânea, sem que as implicações éticas sejam refletidas. Há uma certa preocupação similar em relação ao avanço da inteligência artificial (IA) e outras tecnologias emergentes. O medo não é necessariamente que a IA seja intrinsecamente má, mas sim de como ela será usada e das consequências imprevistas que podem surgir. É uma preocupação legítima, dada a história em que vimos o conhecimento ser usado de maneira inadequada, levando ao esgotamento de recursos naturais e ao enfraquecimento das relações sociais.

É importante lembrar que o conhecimento em si não é bom nem mau; é a maneira como escolhemos usá-lo que determina seus efeitos na sociedade e no meio ambiente. Portanto, é fundamental abordar essas novas tecnologias com cautela, ética e responsabilidade, buscando garantir que elas sejam usadas para benefício da sociedade e para melhorar nossas vidas, sem prejudicar o tecido das relações humanas e o meio ambiente. A discussão e reflexão sobre o novo conhecimento são essenciais para enfrentar os desafios que ele apresenta de maneira construtiva.

Ao compreendermos essa realidade, estamos mais bem preparados para enfrentar os desafios éticos e sociais que surgem no caminho da busca pelo conhecimento e para garantir que a ciência continue a ser uma força positiva para a humanidade.

Texto por Deivid de Paula