Publicado em 19/06/2020

 

O Isolamento social tem aberto o diálogo com muita coisa! Muito trabalho, revisão de práticas cotidianas, arrumações de espaços e de ideias, reflexões sobre os rumos da sociedade, criação e também ampliação do repertório cultural. Em um desses diálogos foi encontrado o filme Tolkien (2019, Reino Unido). A obra dirigida por Dome Karukoski conta a história resumida, desde os primeiros anos de vida, do criador da saga O Senhor dos Anéis. A narrativa fílmica inclui um elemento biográfico desconhecido por alguns: a participação de Tolkien na Primeira Guerra Mundial.

Tolkien na trincheira. Foto: Reprodução/Fox Searchlight Pictures

Apesar de não ter tido a intenção de fazer referência direta ao evento histórico, o escritor deixou muito de suas experiências pessoais durante o sangrento conflito armado (que resultou em mais de dez milhões de mortos) em suas obras literárias. J. R. R. Tolkien foi convocado para lutar na Guerra em 1916, após receber o diploma de licenciatura em Literatura em Língua Inglesa e casar-se com Edith Bratt. Foi durante sua hospitalização devido a uma “febre de trincheira” – e conseguinte retirada da Guerra, em 1918 – que ele deu início aos primeiros escritos sobre seu universo mágico, mundialmente conhecido.

Tolkien: escritor, professor universitário e filólogo. Foto: Reprodução/Fox Searchlight Pictures

Os livros da renomada trilogia, somados ao Hobbit (que os originou, bem como a adendos), constituíram o fascínio de muitos pelo universo da contracultura das décadas de 60 e 70. O grande sucesso, nesta época, envolveu muitos fatores, como o livre uso de alucinógenos feito pelos personagens, o apelo a um modo mais simples de vida – crítica à industrialização e mecanização características do período da Primeira Guerra – e pensamentos libertários, revolucionários e feministas. Inspiraram músicos, bandas de rock notórias, animações, ilustrações e pinturas.

Desde sua publicação na década de 50, O Senhor dos Anéis manteve-se encerrada em ciclos de admiradores, estudiosos e alguns curiosos. Porém, com o hercúleo lançamento do diretor Peter Jackson nos anos 2000, as histórias de Elfos, Magos e Orcs ganharam novo fôlego.

Coube a Karukoski transferir esse emaranhado de ideias ao filme-biografia do autor sem tornar seu filme enfadonho ou destinado apenas ao público que conhece as fantasias de Tolkien. Num paralelo sensível e incrivelmente realista entre os anos de sofrimento da juventude do protagonista até sua participação na Primeira Guerra, vemos desfilar, em associações fantásticas, a criação de dialetos inteiros pelo linguista acadêmico: universos repletos de metáforas que remetem às suas vivências na Guerra, retratadas com excelência e pesquisa pertinente.

Entre a infância pobre assistida pela mãe, que lhe contava histórias de fantasia, até a primeira paixão e a formação de um clube adolescente, é fascinante como o diretor pinça com precisão os traços biográficos que compõem o cenário da complexa obra do escritor, traduzida num conto de aparência maniqueísta, porém extremamente complexo em seus meandros.

O Pântano dos Mortos em O Senhor dos Anéis – As Duas Torres. Foto: Reprodução/New Line Cinema

A biografia do autor de O Senhor dos Anéis, brilhantemente retratada na obra cinematográfica dirigida por Karukoski, permite ao telespectador traçar diversos paralelos entre elementos da Primeira Guerra e o universo (nem tão) fantasioso criado por Tolkien. Entre as muitas analogias, é possível relacionar os Nazgûl aos soldados de cavalaria, portando máscaras de gás; os efeitos do fardo do Anel em Frodo aos sintomas neuropsiquiátricos produzidos nos soldados pelas explosões das cápsulas de artilharia; o Pântano dos Mortos com o Norte da França após a Batalha de Somme (como nas palavras do próprio Tolkien em uma antiga carta); além de, obviamente, encontrar semelhanças entre a coragem e outras características dos Hobbits e os jovens recrutados para o combate.

Para além da biografia e da obra literária, o filme envereda com ternura as relações construídas entre Tolkien e seus amigos de escola, incluindo a luta destes contra preconceitos de gênero, sociais e imposições comportamentais. Vale assistir ao filme Tolkien não só pela bela composição de fotografia e cenografia, mas pela reconstituição de época, a cuidadosa discussão acadêmica que promove e fascinante atuação dos atores.

É com muito carisma que o ator Nicholas Hoult nos conduz pela Terra Média idealizada pelo escritor, associando-a à tocante tristeza de um conturbado início de século. Assim, esta é mais uma produção que indicamos para você, que busca nos filmes a união entre reflexão e entretenimento: Tolkien fascina e comove.

Clique aqui para assistir ao trailer de Tolkien.

Marcio Vaccari e Talita Vieira.