Imagem: Globo Filmes

O premiado filme “Que Horas Ela Volta?”, lançado em 2015, aborda de forma crítica e delicada a desigualdade social na sociedade brasileira. O longa revela as contradições e preconceitos que permeiam as relações entre classes sociais distintas. Dessa forma, a aluna do Ensino Médio, Sarah Gusman Celestino, esclarece a seguir – em sua análise para o Cinema Comentado – essas contradições:

Escrito e protagonizado pela atriz Regina Casé, o filme de 2015, que conta com direção de Anna Muylaert, trata da realidade de vida de Val, uma empregada doméstica pernambucana que se muda para São Paulo em busca de emprego, deixando para trás sua filha Jéssica. Depois de muita luta para chegar à capital paulista, Val consegue um trabalho de babá e empregada doméstica na casa de Bárbara e José Carlos, uma família de classe média alta, onde ela passa a cuidar do filho do casal, Fabinho. 

Após 13 anos trabalhando na casa, Val recebe a ligação de sua filha, Jéssica, dizendo que pretende ir para a cidade prestar vestibular. Jéssica, que tem a mesma idade de Fabinho, se muda para São Paulo com a ideia de prestar vestibular na FAUUSP, uma renomada faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Ao chegar na casa dos patrões de sua mãe, Jéssica pede o apoio de Val para a aprovação no vestibular, mas a realidade é outra, visto que a personalidade das duas é muito divergente, causando entraves entre mãe e a filha.

Regina Cazé, Camila Márdila, Michel Joelsas, Karine Teles, Lourenço Mutarelli e Anna Muylaert

Imagem: Globo Filmes

William Acosta – Professor de Filosofia

A narrativa e o “Espírito do Tempo”

O trabalho de empregadas domésticas tem um contexto socioeconômico histórico no Brasil, reflexo da escravista colonial do século XVI, que ecoa até os dias de hoje.

O professor de Filosofia da Escola Monteiro, William Acosta, comenta a habilidade do filme em contextualizar o cenário coletivo da sociedade brasileira na década de 2010, citando ainda outra obra documental, que se relaciona com o conceito do tempo no filme de Casé: “Existe um documentário de 2007 que Peter Joseph intitulou ‘Zeitgeist’. Esse nome é um conceito filosófico ‘famoso’ que ganhou vida com aquele que, provavelmente, é o último grande filósofo do iluminismo. Refiro-me ao alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel, para os íntimos – como é meu caso -, apenas Hegel (1770 – 1831). O conceito de ‘Zeitgeist’ é comumente traduzido como ‘Espírito do Tempo’. A ideia visa abranger a forma de pensar, mas não a forma de pensar individual, é mais como uma consciência coletiva, o que é hegemônico em um determinado período histórico”, explica.

“Acredito que o longa tenha conseguido sintetizar o ‘espírito do tempo’ dessa primeira metade dos anos 2010, principalmente no que se refere à uma tentativa institucional do Estado brasileiro de tentar reparar alguns problemas com o trabalho que comumente chamamos de doméstico. Já que o Hegel (1770 – 1831) nos diz que as manifestações do ‘Espírito do Tempo’ estão localizadas na Filosofia, na Arte e na Religião, vamos nos utilizar da Arte (especificamente do filme ‘Que horas ela volta’) para entendermos essa manifestação do espírito”.

Com a visão voltada para o âmbito das ações legais do Estado brasileiro, é viável observar o paralelo entre obra ficcional e realidade, entre o trabalho de cuidado com o lar e com a família que Val estabelece e assim como diversas outras diaristas no país, mas que ainda assim não tiveram direitos trabalhistas estabelecidos por muitos anos.

“A CLT de 1943 ignorou as empregadas domésticas como uma profissão, a emenda constitucional nº 72 do ano de 2013 visou reparar esses 70 anos em que a categoria aguardava por uma igualdade em relação aos trabalhadores urbanos e rurais, na prática a profissão existia – quase como uma consequência direta da escravidão -, mas formalmente era desfavorecida em relação à outras categorias. A PEC que gestou essa transformação foi recebida por muitos comentários no noticiário, discussões entre pessoas favoráveis e contrárias. Digo isso com a intenção de demonstrar que esse movimento legal (no sentido de estar no âmbito da lei) visualizou uma categoria de profissionais até então invisibilizada, porém de suma importância na nossa estrutura social (para o que podemos considerar positivo e negativo)”.

O cinema sendo um veículo midiático capaz de atingir todos os tipos de público, faz com que muitas vezes assuntos como a importância de lutas para direitos e representação de classe se tornem mais simples de entender.

“O filme conseguiu transformar essa discussão legal e econômica em uma obra extremamente sensível e que, acredito, tenha conseguido não apenas contar a jornada de trabalho das domésticas, mas um pouco da história do Brasil. A imigração nordestina para o sudeste, a terceirização na criação dos filhos, que a elite brasileira constantemente promove, o desprezo e a humilhação dos empregados que por vezes é feita pelos patrões de forma sútil, as desigualdades oriundas da formação social e histórica do Brasil e a relação de poder que é sustentada pelo mercado de trabalho das domésticas”, finaliza William.

Estruturas Sociais no Filme

A partir de uma análise de relações sociais, é possível questionar qual é posição de Val no núcleo familiar em que ela vive, o qual ela optou criar o filho dos patrões, no lugar de criar sua própria filha e vivendo na casa dos patrões por uma década. A chegada de sua filha, Jéssica, faz ruir a ideologia que oculta as contradições sociais.

Sarah Gusman – Aluna da 2ª série do Ensino Médio

A aluna da 2ª série do Ensino Médio, Sarah Gusman Celestino, autora desse texto, comentou sua escolha de filme para análise. “Escolhi este filme por conta do contexto social que ele aborda. A película que contrasta  drama e comédia traz também o confronto entre Nordeste e Sudeste, do rico e do pobre, um Brasil segregacionista. O  tema da redação do Enem deste ano, que aborda o assunto do trabalho de cuidado da mulher, me incentivou a escolher este filme, visto que esse tema é pouco abordado e é uma realidade no Brasil”.

E é relevante destacar que o tema abordado no Enem 2023, “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”, dialoga de maneira intrínseca com a narrativa de “Que Horas Ela Volta?”, lançado em 2015.

O filme, em última análise, reflete as tensões emergentes na sociedade brasileira com o avanço da classe “C”, que alcançou o acesso a bens de consumo, provocando desconforto na elite social. Esse fenômeno atinge seu ápice quando Jéssica passa na primeira fase do vestibular enquanto Fabinho não, desencadeando uma crise de realidade na família. Diante desse despertar de consciência, Val toma a corajosa decisão de se demitir.

Texto por Sarah Gusman Celestino