Filme escrito e dirigido pelos Daniels e produzido pelo estudio A24 ( Imagem A24 filmes)

Você já teve que fazer uma escolha difícil? Já se perguntou como seria a sua vida se tivesse tomado uma decisão diferente ou, até mesmo, como viveria se tivesse à disposição tudo o que sempre sonhou?

Com uma trama multiversal e um enredo pouco linear, o filme “Todo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” faz uso desses dilemas comuns a todos nós como ponto de partida, trazendo à tona conflitos filosóficos e um cenário multiversal, para expor de maneira poeticamente superlativa o que nos torna o que somos, humanos.

Lançado em 2022 com direção e roteiro de Dan Kwan e Daniel Scheinert – conhecidos como Os Daniels – “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” é um filme estadunidense produzido pelo estúdio A24. O longa, que é uma mistura dos elementos dos gêneros ficção científica, ação e comédia, chegou ao Brasil em junho de 2022 e se tornou um dos favoritos na campanha do Oscar deste ano, sendo detentor de 11 indicações e, entre elas, a tão cobiçada categoria de Melhor Filme.

O MULTIVERSO É INFINITO

Para entendermos a trama do aclamado filme, que acompanha a protagonista Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma mulher que emigrou da China, deixando os seus pais para trás a fim de seguir o sonho americano com o marido, Waymond (Ke Huy Quan), precisamos entender o plano de fundo multiversal da história que será representada.

Em “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” o multiverso é formado por infinitos universos, com diferenças que podem variar de escalas grandes para pequenas. Complicou? Pois, vamos esclarecer!

De forma simplificada, nós vivemos em UM Universo. Entretanto, existem INFINITOS outros Universos que estão contidos dentro do Multiverso. Resumidamente, fica mais fácil entendermos Multiverso como o coletivo de Universos, assim como cardume é o coletivo de peixes.

O multiverso é um infinito conglomerado de universo.(Imagem: Shutterstock)

Cada universo é formado a partir de uma possibilidade (Imagem: A24 Filmes)

ENTÃO, COMO SURGEM OS UNIVERSOS?

O Multiverso é infinito! Isso porque existem infinitos Universos dentro dele, pois cada ação – por menor que seja – gera infinitas probabilidades do que poderia ter resultado, assim criando inúmeras ramificações universais onde cada uma delas aconteceu. Esse conceito é mostrado no filme, quando acompanhamos as outras vidas da protagonista.

Em um Universo ela é cega e cantora, em outro não se casou e virou atriz. No outro ela é cozinheira, e em outro tem mãos de salsicha – isso porque a personagem teve ações diferentes que geraram Universos diferentes.

Assim, no universo “principal”, acompanhamos Evelyn e o marido abrirem uma lavanderia, por cima da qual vivem com a filha, Joy, a primeira geração da família a crescer nos EUA. Porém, em um dia conturbado, Evelyn é arrastada para uma aventura insana, na qual precisa salvar o seu mundo ao explorar outros universos conectados com as vidas que ela poderia ter vivido.

Partindo da sua premissa, o filme explora conceitos complexos, ao se aproximar de debates humanos, de maneira extremamente emocionante e competente. A forma como o filme é construído permite que o espectador experimente diferentes realidades e dimensões, mergulhando em mundos alternativos fascinantes.

O QUE HÁ ALÉM DO MULTIVERSO DO FILME?

E se o filme minuciosamente cruza gêneros cinematográficos e elementos de ficção científica para estabelecer o cenário onde a trama acontece, é no decorrer da própria trama que a história se expande. Entretanto, ao invés de unir elementos distintos para formar um universo caótico e complexo, agora são formadas reflexões e debates filosóficos, propositalmente conflitantes, a fim de estabelecer dialéticas reflexivas – a partir dos personagens envolvidos.

Isso é o que ocorre através do embate entre a protagonista Evelyn Wang e a antagonista Jobu Tupaki, de forma que esta última, após ter vivenciado todas as suas versões e vidas em diferentes multiversos, usa de uma filosofia radical, para a qual nada na vida ou no universo é relevante ou importante, e se esvazia de seus sonhos e anseios. Portanto, se nada importa, por que não realizar um caos em todo o Multiverso? Tal ideia entra em conflito com a jornada da protagonista, Evelyn, que precisa evitar a destruição de todo o Multiverso, mesmo reconhecendo que nada importa de fato.

Jobu Tupaki é uma versão multiversal da filha de Evelyn (Imagem: A24 Filmes)

Evelyn hesita em aceitar sua jornada, por ter como rival sua filha, Joy (Imagem: A24 Filmes)

Todo o teor filosófico do filme não é gratuito, isso porque a filosofia é parte essencial para a criação das motivações e desenvolvimento dos personagens da trama, assim como a atitude filosófica de se questionar sobre a vida ou refletir o ser é importante para a nossa construção como seres sociais.

Ezimar Bravin, professor de filosofia e sociologia da Escola Monteiro, explica como o ato de refletir auxilia na composição de nossa ética e manutenção de nosso ser social: “Em termos filosóficos, a reflexão é uma atividade específica dos seres humanos e que está na essência da própria Filosofia. Dessa forma, os dilemas, em especial no campo ético, nos ajudam a refletir sobre os nossos valores, princípios e sobre nossa própria conduta”. Assim, Bravin evidencia a importância não apenas dos dilemas supracitados, mas também da própria imprescindibilidade da atitude filosófica.

“Pode-se afirmar também que a reflexão nos leva ao autoconhecimento, à consciência que deveria estar na base de nossas escolhas, ou seja, de nosso projeto de vida”, conclui o professor.

De acordo com Ezimar Bravin, é possível relacionar a visão das personagens com uma das vertentes da filosofia, a corrente niilista. Isso porque existem diferentes tipos de niilismo, que assumem conceitos diferentes ao longo da história da filosofia: “De uma forma geral, o próprio Cristianismo pode ser tratado como uma doutrina niilista. O niilismo pode ser entendido como a negação de valores vigentes na sociedade que regulam a vida”, explica.

“Vamos nos ater à diferença entre niilismo passivo e niilismo ativo, como apontado pelo filósofo alemão do séc. XIX, F. Nietzsche. Esse filósofo criticava duramente os valores ocidentais de sua época, no entanto, segundo ele, não basta destruir os valores, é preciso destruir os valores que negam a vida e construir algo novo no lugar”. Bravim explica ainda que os dois tipos da corrente filosófica são incorporados ao filme a partir das duas personagens principais.

Conforme o professor, no niilismo passivo, representado pelas intenções de Jobu, propõe-se apenas a destruição dos valores sem colocar nada no lugar, podendo levar à desagregação social, à destruição de tradições, a conflitos entre indivíduos e instituições sociais – no caso, o que aconteceu com Jobu e sua família – ou a situações piores, como massacres e suicídios.

Ezimar Bravin, professor de filosofia e sociologia da Escola Monteiro (Imagem: Monteiro)

Segundo Bravin, a perda de referenciais pode ser devastadora para seres sociais, como os humanos. Agora, em relação ao niilismo ativo, evocado por Evelyn Wang, a destruição de valores que negam a vida pode resultar em pequenas ou grandes transformações, desde a forma como tratamos outra pessoa ou como sistemas políticos e econômicos se comportam.

TUDO AO MESMO TEMPO NO MESMO LUGAR

No filme, a antagonista Jobu Tupaki, com a intenção de pôr um fim à sua vida vazia de motivações e carregada da falta de significados, constrói um elemento chamado “Bagel”, que é a junção de TUDO que existe, ao mesmo tempo, em um único lugar – fazendo alusão ao título do longa metragem. Assim, Jobu obtém como resultado o NADA, uma espécie de antimatéria que destrói tudo com o que entra em contato, o “Beagel”.

Begal, uma rosquinha feita de tudo (Imagem: A24 FIlmes)

De acordo com o professor Bravin, na filosofia antiga, entre os pensadores pré-socráticos, existiu Anaximandro de Mileto. Ele propôs – no sentido inverso ao do “Bagel” – que existia um princípio originário de tudo o que existe, o chamado Ápeiron.

“Ao que parece, Jobu procurou construir uma espécie de máquina de caos que causasse a destruição da realidade, daquilo que causava seu sofrimento”, contextualiza Bravin. “Diferentemente, na Filosofia, caos e ordem, que já foram vistos como opostos, hoje são vistos como complementares. É possível encontrar esse pensamento de complementaridade na Filosofia Oriental (o yin e yang), entre os pré-socráticos, como Heráclito de Éfeso e sua afirmação de que o equilíbrio e a harmonia estão na existência e interação dos contrários e, hoje em dia, no pensamento de filósofos como Gilles Deleuze”, conclui o professor.

Ainda evidenciando a dialética filosófica do filme, como a personalidade niilista passiva de Jobu possui uma figura que precisa se opor a ela, através de Evelyn, o Begal criado por Tupaki possui o “Olho” de Evelyn. Enquanto o Begal representa o nada, uma máquina de caos e destruição, o “Olho” de Evelyn se manifesta em um momento de amadurecimento e evolução da protagonista, sendo a antítese do Begal, representando assim a criação e o aprendizado, de modo a estabelecer um equilíbrio na trama.

Tal oposição também se manifesta visualmente: enquanto a rosquinha é preta com o centro branco; o olhinho é branco com o centro preto, simbolizando os dois lados em conflito dentro do filme.

O olhinho na testa de Evelyn simboliza a ordem e o caos que existe nele (Imagem: A24 Filmes)

O Begal, a rosquinha, simboliza o caos e a ordem que existe nele (Imagem: A24 Filmes)

O QUE REALMENTE IMPORTA?

A história original escrita pelos Daniels se apresenta mais do que uma trama espetacular e movimentada, isso porque, além de mesclar incrivelmente os elementos dos gêneros ação, humor pastelão e ficção científica, a história usa desses ornamentos para encantar o telespectador e no fim entregar o que realmente importa, o aprendizado e autoconhecimento. Ao tocar questões humanas e elevá-las ao extremo, através do fio condutor que é a protagonista Evelyn Wang, a obra se condensa em um profundo debate sobre a vida que cada um gostaria de viver e a vida que cada um vive.

E aqui chegamos ao cerne de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”: o filme explora tudo o que o Multiverso tem a oferecer, e faz isso com sensibilidade e sem medo de por uma história no centro de todo o caos que é o enredo, cujo propósito é fazer o telespectador refletir junto com os personagens da trama.

Ao deixar clara a importância de sonhar com novos dias, reconhecer o que realmente importa e construir com sensibilidade uma personagem humana o suficiente para entender os erros cometidos e enxergar o amadurecimento, aprendizado e o autoconhecimento como saída para os problemas (e não algo a ser evitado), a obra modifica não apenas os personagens envolvidos na trama, como também o telespectador.

O filme faz jus ao seu nome e une tudo ao mesmo tempo e, ao invés de uma bagunça desenfreada, entrega ao longo de toda a sua duração elementos cinematográficos distintos, debates e reflexões filosóficas conflitantes e uma linda jornada do herói, voltada ao amadurecimento. Tudo isso para obter como resultado a reflexão sobre o que realmente importa dentre tudo que está ali, no caso do filme: o reconhecimento de que a vida vale a pena, pois quem dá um sentido para ela somos nós, através do que escolhemos como importante.

No fim, se pela ficção científica se estabelece um mundo, pela reflexão e entendimento do próprio ser se estabelecem pessoas. Assim, “Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo” é um ótimo filme para quem busca uma experiência cinematográfica incrível e enriquecedora, que deixa o telespectador completamente imerso na história.

Filme: Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Imagem: A24 Filmes)

Tudo Em Todo O Lugar Ao Mesmo Tempo | Trailer Dublado:

Texto: Deivid d. Paula